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Confissões de uma Fantasma Digital

por LucyHare, em 23.08.25

Num País de Hiper-Conectados

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Caros leitores ou usuários, permitam-me que comece com uma confissão: eu sou uma fantasma. E calma, não ando a arrastar correntes por corredores sombrios. O meu assombro é bem mais moderno. Eu assombro o mundo digital pela minha gritante ausência, o que, num país como Portugal, me torna uma autêntica raridade estatística.

Não tenho Instagram para exibir o meu almoço (que, garanto-vos, hoje foi uma sanduíche perfeitamente banal preparada em casa de manhã), nem Facebook para anunciar ao mundo que "me sinto complicada" ou que estou numa relação... O meu LinkedIn está mais desatualizado que um mapa-mundo com a União Soviética. E o X? Bem, o X para mim continua a ser o nome de um ficheiro que não quero guardar.

Esta minha condição de eremita digital provoca, nos meus amigos e familiares, uma de duas reações: ou me olham com uma pena imensa, como se eu vivesse numa gruta, ou me encaram com uma admiração invejosa, como se eu fosse uma Carmelita em recolhimento. A verdade, como sempre, está algures no meio desta tragicomédia. E os dados mostram que a minha situação é, de facto, peculiar: Segundo o Relatório "Digital in Portugal" da We Are Social e Meltwater, enquanto 84,3% dos portugueses – incluindo, certamente, a minha mãe – são utilizadores ativos de redes sociais, eu faço parte de uma minoria quase residual.

A pressão para existir online é real e quase universal. É uma espécie de "partilho, logo existo". E eu, aparentemente, não existo muito... Enquanto o utilizador médio português despende cerca de duas horas do seu dia a consumir e a produzir conteúdo, de acordo com o "Global State of Digital" da DataReportal, eu estou aqui, no meu cantinho, a ler um livro. Um objeto arcaico, feito de árvores mortas. Sinto uma paz quase subversiva em não saber qual o último desafio viral no TikTok ou quem foi "cancelado" esta manhã. O meu cérebro agradece esta dieta de baixa informação. A minha sanidade mental respira de alívio.

A privacidade tornou-se o meu luxo supremo. Os meus dados não andam a ser vendidos a troco de anúncios sobre cremes anti-idade para preocupações que ainda não tenho. É uma escolha consciente por não querer transformar a minha existência numa performance. Quero ter o direito de ser aborrecido, de ter dias maus, de comer uma sanduíche feia sem a transformar num post.

Mas – e este é um "mas" do tamanho de um elefante na sala – esta minha torre de marfim analógica tem fendas. E que fendas. Outro dia, um amigo organizou um jantar de grupo. Onde? Num chat de Instagram do qual eu, obviamente, não fazia parte. Resultado: fui a última a saber e quase apareci no restaurante errado. Isto porque, como mostram os dados, o Facebook e o Instagram funcionam como a praça central para a organização da vida social portuguesa. Ficar de fora significa, literalmente, ficar a ver a festa de fora da janela.

E o mundo profissional? Bem, o mundo profissional é mais complicado. Tentar explicar a um recrutador que a minha ausência do LinkedIn não se deve a uma carreira no crime organizado é um desporto de alto risco. Olham para mim com a mesma desconfiança com que olhariam para alguém que lhes tentasse pagar com conchas. E com razão: de acordo com a NapoleonCat, com mais de 2 milhões de utilizadores em Portugal (12,2% da população portuguesa), o LinkedIn tornou-se o currículo digital de facto. A minha "pegada digital" profissional é a de um anão a andar de sapatos de feltro na neve. Invisível.

O mais irónico de tudo é o paradoxo geracional. Enquanto eu, na casa dos 40s e muitos, me escondo da luz digital, a geração da minha mãe abraçou-a com um entusiasmo desarmante. Ela é a regra, não a exceção. Os dados confirmam-no: os seniores portugueses são dos utilizadores que mais crescem e mais ativos são. São os reis e rainhas da partilha de memes, correntes de oração e fotos de netos. Eles usam as redes para combater a solidão e manter laços, muitas vezes com mais engagement do que os netos mais céticos como eu. A minha mãe tem, de facto, uma vida social online mais vibrante do que a minha, e isso diz mais sobre os tempos em que vivemos do que sobre nós.

Então, sou uma guru ou uma idiota? Uma visionária ou uma dinossauro?

Creio que não sou nem uma coisa nem outra. Os dados mostram que a minha busca por privacidade é partilhada por muitos (cerca de 64% dos portugueses preocupam-se com os seus dados de acordo com a CNPD), mas a maioria aceita trocá-la pela conexão e conveniência. A minha ausência é, portanto, anómala, e as desvantagens são reais.

Talvez a solução, como intuí, não seja a ausência total, mas a presença intencional. Não se trata de uma rendição total ou de uma fuga puritana, mas de uma adoção crítica e consciente. Usar o LinkedIn como uma vitrina profissional essencial, estar num grupo de WhatsApp de família para não perder o jantar, e ignorar completamente a pressão para publicar a sanduíche.

É, no fundo, a mais humana das escolhas: fazer com que a tecnologia sirva a vida, e não o contrário. E, pelos vistos, isso inclui apreciar uma sanduíche pelo seu sabor, e não pelo seu valor estético online. A minha mãe que o diga – entre dois posts no Facebook.

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publicado às 20:30



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